Jessika de Oliveira Baixagrandense é convidada para compor a seçao de literatura da revista ruído manifesto de Cuiabá-MT

 


Foto/Divulgação

A escritora Baixa-grandense Jessika Oliveira teve mais um grande destaque, dessa vez JessiKa de Oliveira foi convidada para compor a seçao de literarura da revista ruído manifesto de Cuiabá.

"Um conto e um poema de Jessika de Oliveira"

 


"1 DE AGOSTO DE 2022 CONTO, LITERATURA, POESIA, RUÍDO

Um conto e um poema de Jessika de Oliveira

Jessika de Oliveira. É uma mulher, negra, mãe, graduanda do curso de Letras, escritora, poetisa, líder de impacto e coordenadora do projeto Negra Sou. Ela é membro Acadêmica Imortal Vitalícia na Academia Internacional Mulheres das Letras, Acadêmica na Academia Internacional de Literatura Brasileira. Foi a primeira mulher a ocupar e morar oficialmente na residência universitária masculina da UFBA, transformando o espaço em um ambiente plural, com vagas de moradia tanto para homens quanto para mulheres universitárias. Autora dos contos Festa de Aniversário e Maria, Piedade e do poema Buraco Saudade, publicados em antologias nacionais e internacionais. A jovem escritora é uma das referências da cidade de Baixa Grande na luta antirracista que, visa promover a equidade através da desestruturação do racismo. Seus escritos são embalados por histórias de mulheres negras e baianas. Jessika é reconhecida por sua literatura e falas potentes por diversas autoridades do país.

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FESTA DE ANIVERSÁRIO

Nós, seres humanos, quase certos de que onde há “fumaça, há fogo”, nos deixamos levar pelas aparências e julgamos uma verdade como única. E antes que nosso lado “juiz” aflore por aqui, quero lhes lembrar que só existe verdade no plural.


A noite estava quase findando e os pensamentos de Joana percorriam todas as ruas de sua memória se perguntando se a voz da noite poderia responder se seu amor também velava assim como ela e se um dia o reencontraria. Depois de muito sentir toda a saudade que seu peito guardava, recostou no travesseiro e pegou no sono. O dia raiava cedo para Joana, às 7 horas já estava na cozinha ajudando a preparar o café para depois seguir para a oficina de costura no outro pavilhão. A rotina barulhenta e tumultuada não lhe causou mais enxaqueca, suas dores se tornaram crônicas desde que chegou. Se é que pode se chamar de “lar” pela força do hábito, a casa tem três pavilhões e suas divisões foram todas arquitetadas. No primeiro pavilhão, as mulheres mais “perigosas”, para ficarem mais próximas do olho do funcionário. No segundo, bem no meio e mais cercado colocam as que tentam fugir. No terceiro ficam as provisórias, apenadas que ainda esperam julgamento assim como Joana. Do tempo que estava ali, já perdera a conta de quantas datas comemorativas se passaram desde que chegou. Longe de tudo, isolada do mundo e do seu grande amor. Entre uma oficina e outra que eram realizadas na penitenciária, ela conseguia silenciar um pouco a saudade que gritava em seus olhos. Não era boa com a palavra escrita, mas sabia muitas histórias que aprendeu com sua falecida mãe. Dona Marizete, empregada doméstica, retirante do Nordeste para São Paulo, faleceu de um infarto fulminante em um domingo à noite na casa dos patrões. Joana conheceu a face da solidão ainda moça, não conseguiu concluir os estudos, começou a trabalhar aos 15 anos em uma lavanderia especializada em roupas íntimas femininas. Quem lhe arrumou o emprego foi a ex-patroa de sua mãe, a doutora Soraia Goddoy, médica cardiologista, casada com o doutor Otto goddoy, médico geriatra. O emprego na lavanderia foi para Joana por muito tempo um ato de compaixão e amor da querida ex-patroa da mãe. Pensava que se não fosse pela generosidade daquela mulher, ela nem sabe se estaria viva hoje. E pensou isso por muito tempo enquanto lavava aquelas calcinhas das madames, emboloradas de corrimentos, sujas de menstruação, marcadas por espermas e também algumas com coco. As cores eram bem parecidas, parecia até que calcinha de gente rica tem cor: nude, aquela cor pastel, sem “graça”. Quando aparecia uma vermelha ou preta, ela já sabia, separava no cantinho “calcinha de evento”, provavelmente a madame deveria ter usado com o marido ou com o amante. Joana se divertia ainda menina vendo todas aquelas calcinhas de todos os tamanhos, assim como os soutiens e lembrava da mãe que muitas vezes também lavou calcinhas de madames. Trabalhou durante anos nessa lavanderia até conhecer Paulão, o novo motorista substituto. Responsável por fazer as entregas das peças lavadas em domicílio, os dois ficaram amigos e depois de algumas saídas se apaixonaram. Paulão era mais velho que Joana alguns anos, mas nada que fizesse tanta diferença assim. Depois de um ano de namoro, oficializaram a relação. Por serem queridos pelos outros funcionários da lavanderia, receberam muitos presentes, inclusive uma lingerie amarela que Joana ganhou da patroa. Engraçado que ela nunca tinha lavado uma lingerie amarela, será que as madames não gostavam de usar essa cor na hora H. Se perguntava ela, lembrando do bilhete que veio junto com a lingerie “Essa cor amarela é ideal para sua cor de pele”.


Os noivos ganharam o dia de folga e foram comemorar com um passeio no parque, o dia estava lindo demais para pensar em fazer outra coisa. Dessa união, Joana teve seu primeiro filho, Zeca, nome que foi dado em homenagem ao grande amor da vida de sua mãe, seu irmão que morreu de pneumonia quando chegaram em São Paulo. Se Zeca fosse vivo estaria muito feliz em poder ter um sobrinho, mesmo que talvez ele não tivesse seu nome.  Joana acompanhou cada fase nova do filho, registrava todas as descobertas da vida inicial. Foi demitida do emprego assim que voltou da licença maternidade, conseguida com muita luta, embora fosse um direito seu. Conseguiu ajudar na despesa da pequena casa onde moravam por alguns meses, coisa bem pouca, pois o seguro-desemprego era pouco. Passou a fazer algumas encomendas para vender fora, doces de pote, bolos e também pastéis. Vendia pela comunidade, nas festas da igreja e quando saia com o filho para o postinho de saúde. A vida para ela nunca tinha sido fácil, mas tinha ficado um pouco mais difícil com o aumento da despesa e o desemprego. A única renda fixa na casa, por enquanto, era a do marido Paulão, esse se encontrava nervoso e impaciente, parecia procurar um motivo para sair do casamento. E ela, que não era mais uma menina ingênua recém-chegada na cidade grande, sabia e sentia todo aquele desprezo do companheiro. Conseguiram segurar as pontas alguns meses e, quando o pequeno Zeca estava para completar um ano, Paulão foi demitido. Pelas suas contas o dinheirinho que tinha guardado na lata de arroz dava para comprar o leite do filho até o próximo mês. O tempo foi passando e Zeca se parecia cada vez mais com o falecido tio, já balbuciava algumas palavras e


Adorava os gatos que apareciam no quintal. Joana continuou fazendo doces, bolos e pastéis para encomendas. Paulão desempregado passava o dia fora e só chegava em casa para jantar e dormir e sem trocar uma palavra com a mulher e muito menos com o filho. Joana ouvia sempre um bochicho aqui e ali de que ele tinha algumas outras mulheres, mas isso não lhe causava angústia, tinha preocupação maior: Zeca. Com o passar dos anos, a rotina do casamento ficou cada vez mais difícil e Paulão se encostou em Joana, que cada vez mais conseguia clientes para seus bolos podendo assim manter o sustento da casa. Faltava um dia para o aniversário de 3 anos de Zeca, Joana tinha resolvido que iria comemorar com o filho e os colegas da rua aquela data tão especial, Paulão não aparecia em casa há mais de dois dias. No dia do aniversário do menino, logo cedo, ele apareceu, roupa cheirando a bebida, cigarro nos bolsos e um hálito de quem não escovava os dentes há dias. Foi direto para o quarto, parecia não saber que dia era aquele, dormiu e só acordou para o almoço. Angustiado, nervoso, andava de um lado para o outro pela casa sem falar uma palavra. A vizinha bateu na porta, era o guaraná que Joana tinha pedido para ela comprar. Ela entrou e juntas começaram a arrumar a mesa, encher os balões e os confetes das balas para a festinha. Tudo estava ficando lindo, não existe decoradora melhor do que uma mãe com amor no coração. Bateram à porta e Joana foi atender, estranho não havia ninguém, podia então ter sido o vento. Depois que terminaram, a vizinha ajudou Joana a colocar o bolo de dois andares na mesa. A festa estava pronta, agora era só arrumar o pequeno Zeca e esperar os convidados. A vizinha foi para casa e ela foi até o quarto pegar o filho que, para sua surpresa, não estava na cama, começou a procurar no quarto, na cozinha, na sala e não o encontrava. Nem Zeca e nem Paulão estavam em casa. Em sua cabeça passavam mil pensamentos, saiu porta fora procurando o menino pela rua e nem sinal. As horas foram passando, alguns convidados chegando para o aniversário e Joana aos prantos, desesperada sem ter notícias do filho que poderia estar sabe lá Deus onde. Acabou fechando os olhos abraçada com a roupinha que havia separado para ele vestir em sua festinha, um macacão amarelo.


Quando o dia amanheceu, Joana foi acordada pela vizinha que avisara do paradeiro de Paulão. O homem estava em um bar próximo dali, onde tinha virado a noite bebendo, fumando e cheirando cocaína rodeado de mulheres. Ele olhando nos olhos dela disse pausadamente: Pare de chorar por aquele menino que só trouxe azar para nossa vida. Eu vendi ele! O som estava alto e Joana não entendia o que Paulão falava, ou melhor, ela não queria ouvir o que ele falou. Pediu que repetisse e ele voltou a dizer: Vendi aquele menino que só deu azar pra gente. A primeira coisa que ela viu a sua frente foi uma faca grande, usada para cortar mortadela. Pegou a faca e esfaqueou aquele miserável, maldito que acabara com sua vida ali. Só parou depois que viu sua vida sumir em suas mãos. Ela, se pudesse, mastigaria cada pedaço daquele homem que um dia lhe dera a maior felicidade da vida e também a maior dor. As sirenes da viatura já “cantavam” na esquina antes mesmo que Joana pudesse se arrepender. Foi presa em flagrante e soube tempos depois que Zeca tinha sido comprado por um casal de pastores. A única lembrança que tinha do filho era o macacão amarelo que ficou no chão do bar, sujo do sangue do próprio pai que o vendeu.


 


 


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BURACO SAUDADE


 


Ele acordava bem cedo pra carregar feira no mercadão


Ganhava pouco


Mas pra gente era muito


Dava pra comprar farinha e feijão


 


Todo santo dia seu nome tava na oração


Queria seu filho sempre vivo


Pedia saúde, sorte e proteção


 


Vai pra escola? Carrega o livro na mão


Vai chover? Vai com guarda-chuva aberto


Tá com pressa? Não corre


Vai pro futebol? Não joga sem camisa


Vai sair? Carrega os documentos pra não ser confundido… Ele sorria, mas sabia o sistema que foi criado


O bicho podia pegar correndo, sentado, na rua ou na porta de casa


Morava onde filho chora e mãe não vê


Terra de preto onde a polícia bota pra foder


 


Nessas idas e vindas


Ele não voltou pra casa com vida


E agora mais uma mãe preta chorava desvalida, sufocada, revoltada


O buraco da saudade que tanto a maltratava."

Fonte : Ruido Manifesto.ORG

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